Tudo junto e misturado: José Roberto Afonso

BNDES e demais instituições estatais de desenvolvimento deveriam voltar a operar como tal e não mais como agentes financeiros do Tesouro, atendendo a interesses mais imediatos da política fiscal ou mesmo econômica, defende José Roberto Afonso em artigo da Conjuntura Econômica de julho.

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O barato (para o Tesouro) sai cada vez mais caro (para o BNDES e para o país). Entre 2008 e 2014, o Tesouro Nacional emprestou R$ 440,8 bilhões àquele banco e fixou taxas de juros, prazos, atividades e, por vezes, até definiu os mutuários a quem deveria financiar. Ficou tudo junto e misturado no BNDES: se apequenou o clássico banco de desenvolvimento e se agigantou o mero agente financeiro Tesouro Nacional. [1]
Se montar essa confusão entre contas e funções se revelou um erro, reincidir nele será seguir uma política financeira que não identifica e aparta fontes e usos de recursos, separando os extraordinários do Tesouro daqueles ordinários (como os repasses do FAT). Enquanto se mantiver tudo junto e misturado, é possível que a justa tentativa de desarmar um foco de desajuste fiscal prejudique uma das raras fontes de financiamento de longo prazo de nossa economia. Nem se percebe isso quando se saca do caixa e se encarece sua taxa de juros, em ambos os casos afetando o banco de desenvolvimento.
No caso das antecipações do passivo do BNDES junto ao Tesouro, não se vinculou a que as operações ativas tivessem sido liquidadas antes de vencerem (o que seria um caso de irracionalidade diante de suas condições vantajosas). Em 2016, o banco já desembolsou efetivamente menos do que dispunha para liberar em fontes correntes. É um paradoxo absurdo apostar que a recessão exploda os bancos de liquidez e, ainda pior, a sacar para o Tesouro sob pretexto de pagar a dívida pública que mesmo assim cresceu (até porque não se fez ajuste fiscal). Para tanto, em dezembro último, o BNDES pagou R$ 40 bilhões em títulos e sacou R$ 60 bilhões das compromissadas, mas no mesmo mês a dívida mobiliária em mercado cresceu em R$ 25 bilhões, e até abril, em R$ 162 bilhões; as compromissadas até caíram no mesmo montante naquele mês, mas cresceram R$ 49 bilhões nos quatro meses seguintes.
No caso da troca e aumento dos juros de referência dos empréstimos do BNDES (TJLP para TLP), não se assumiu no discurso, mas o efeito prático será transferir toda a conta atual dos subsídios do Tesouro (e não só do gasto orçamentário com equalização, como também do custo implícito de oportunidade) para os futuros tomadores de crédito, aí sim do BNDES. Se fossem os mesmos do passado, seria uma operação perfeitamente neutra e justa. Mas não serão. Um terço da fonte do Tesouro financiou compra de ônibus e caminhões e setores rural e exportações, quando a aquisição tradicional de bens de capital ficou em um quarto do total. Considerados apenas programas subsidiados pelo Tesouro (com o PSI à frente), impressiona e surpreende que 91% tenham sido repassados pelos agentes financeiros. Isto tudo que se fez com recursos e, o principal, por conta e por ordem do Tesouro que nada tem a ver com uma típica instituição de desenvolvimento. Esta já começou a ser resgatada pelo BNDES, quando recentemente mudou sua política operacional, inclusive para estimular os mercados de capitais, e também suas prioridades, como privilegiar a infraestrutura. Mas esse esforço louvável corre risco de ser frustrado porque os novos investidores, além de apostarem contra a recessão e esperarem retorno em operações longas e arriscadas, ainda terão que pagar a conta, sem saber e sem evitar os subsídios que foram dados para outros empresários e talvez bancos.
Foi muito fácil embarcar na aventura que transformou o Tesouro num dos maiores bancos do país, usando o BNDES como sua marionete. Foram emitidas várias medidas provisórias e atos da Fazenda e do Banco Central e as contas da União aprovadas sem ressalvas, inclusive repasses em títulos, para não passar pelo orçamento, tese até hoje nunca rejeitada. Pior, bilhões voltaram (ou nunca saíram) para os cofres do Tesouro, transmutados em receita primária (dividendos, impostos) ou pela venda de ativos financeiros, mas o BNDES ficou devendo por eles. Do que foi emprestado, inicialmente era preciso sustentar a estória da marolinha, da solidez dos sistemas, o BNDES atuou para salvar muitas das grandes empresas (e junto os bancos para quem deviam, inclusive em derivativos cambiais) e para injetar liquidez no sistema [2]. Depois, mesmo retomado o crescimento, se passou a repassar cada vez mais com taxa prefixada o que antes era TJLP, e o governo prefixou desde o spread dos agentes financeiros até as condições, diferenciadas por setores, quando não fixou até mesmo montante a ser emprestado a cada mutuário – como no caso dos governos estaduais.



À parte, vale chamar a atenção que o BNDES sempre operou em parceria com os demais bancos, inclusive privados – aliás, como ocorre no resto do mundo, onde não são vistos como antagônicos, quanto menos que a instituição de desenvolvimento atrapalharia a expansão daqueles ou a potência da política monetária. Entre 1995 e 2017, o BNDES desembolsou cerca de R$ 2,7 trilhões com tendência no longo prazo (ver gráfico 1) a metade repassada através de operações diretas e outras, indiretas. Estas descolaram e superaram claramente aquelas no período de maior aporte do Tesouro (as indiretas respondem por mais de 61% do total liberado em 2011 e 2013, por exemplo) e também desaceleraram menos rápido que as diretas depois de 2014. Por isso que, acumulando o desembolsado entre 2009 e 2016 (R$ 854 bilhões), as operações indiretas responderam por 91% dos repasses de recursos do Tesouro sujeitos à equalização (R$ 375 bilhões) e a 38% no caso da mesma fonte sem subsídio (R$ 281 bilhões), e contra irrisórios 5% consideradas as fontes próprias do BNDES (R$ 198 bilhões) – vide gráfico 2. Houve uma clara e radical migração dos agentes financeiros para operarem quase que exclusivamente com os repasses extraordinários do Tesouro, mais baratos e mais longos. Com as tradicionais fontes e operações diretas típicas de um banco de desenvolvimento, mal foram realizadas pouco mais de um quinto do total desembolsado pelo sistema BNDES nos sete anos analisados.



O desembarque dessa ciranda da felicidade financeira movida pelo Banco do Tesouro será muito mais complexo e delicado do que simplesmente exigir do BNDES que pague até pelo que não recebeu e sobretudo pelo que se usou sem moto próprio. Pior ainda é transferir a herança para os futuros investidores, quando mais se precisa de seus projetos, ainda pre- cisarão pagar mais caro por fundos que captam a custo zero (caso dos tributos vinculados constitucionalmente ao FAT e aos fundos regionais, entre outros). Diante dessa flagrante contradição, é preciso buscar soluções mais ousadas e corajosas.
A forma definitiva (e mais radical) para desfazer a confusão seria transferir para o Tesouro Nacional todos os atuais ativos do BNDES, oriundos dos recursos extraordinários por aquele repassado, em créditos e em participações acionárias, cotados a valores de face e contábeis, baixando ao mesmo tempo e em montante igual o que consta no passivo daquele banco. Não seria tão difícil para o Tesouro executar tais créditos uma vez que 90% do estoque de créditos subsidiados são devidos por instituições financeiras (muitas estatais), as mesmas com quem ele se relaciona em torno da dívida pública.
Uma alternativa é a criação de mais uma subsidiária – a BNDES-TN, para a qual devem ser transferidos desde a holding e os mesmos ativos e passivos vinculados ao Tesouro. Não precisa um novo funcionário, é uma empresa exatamente como no caso da Finame. Algo parecido já foi feito pelo governo federal quando criou a Emgea, empresa para a qual transferiu os créditos podres de outros bancos federais – com a vantagem agora de que não haveria problema na qualidade do crédito.
Qualquer das mudanças acima exige lei. Ideal seria não mais reemprestar o retorno de crédito antes concedido tendo o Tesouro como funding, de modo que, uma vez quitados os atuais contratos, seria fechado seu banco. Se for para o manter, apenas nesse caso caberia aplicar a nova taxa de longo prazo vinculada aos títulos longos do Tesouro (TLP), assim ficaria, em tese, casado o seu ativo com seu passivo. Por outro lado, sem qualquer implicação orçamentária, seria possível manter a TJLP, como uma taxa arbitrada, aplicada em projetos de longo prazo e, o principal, formada de forma imune aos humores do mercado e sem obrigação de pagar heranças fiscais malditas. Mais que isso, o BNDES e as demais instituições estatais de desenvolvimento poderiam voltar a operar como tal e não mais como agentes financeiros do Tesouro, atendendo a interesses mais imediatos da política fiscal ou mesmo econômica.
Enfim, é hora de separar as contas e as coisas, a política financeira não deve ser misturada com a política fiscal. Sobram dados públicos, mas faltam análises despidas de preconceito e ideologia para saber distinguir entre o que seja um banco de desenvolvimento e o que seja um mero agente do Tesouro. Vamos separar o que nunca deveria ter sido juntado sob pena de continuar incorrendo em equívocos.
[1] A página BNDES Transparente permite consultar desde os demonstrativos financeiros até mesmo cada operação realizada: http://bit.ly/2sepjQQ. Em particular, um relatório trimestral detalha as captações realizadas junto ao Tesouro Nacional e suas aplicações (inclusive relacionamento das empresas beneficiadas): http://bit.ly/2seiaA4.
[2] Sobre o uso do BNDES para combate à crise global, ver do autor a tese de doutorado defendida na Unicamp, em dezembro de 2010, Política fiscal no Brasil no contexto da crise, e o artigo na revista Econômica da UFF, “As intricadas relações entre política fiscal e creditícia no Brasil pós-2008” – em: http://bit.ly/2seT7gq.